Lá e de volta outra vez

Tinha abandonado este espaço há muitos e muitos anos. As agruras da vida se impuseram. Mentira, não tem agruras, não vou agir como se tivesse sofrido neste meio tempo. A vida se impôs, apenas. É o que ela faz de melhor.

Mas eu sou teimoso e estou de volta aqui. Prioritariamente, para deixar os textos que insisto em escrever, partes de um esforço de aprendizado. Não serão geniais – não serão sequer bons – e provavelmente serão chatos como o que se lê em um jornal. É pra ser assim mesmo. Se quiser rir, leia Veríssimo.

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O Grande Soluço

Eu sempre fui fascinado com a forma como surgem os nomes de grandes eventos ou momentos históricos. Eu lia nos livros de História e pensava “que loucura isso, gente, quem teve a ideia de chamar isso de A Guerra das Rosas?” Porque nem sempre é algo óbvio. Afinal, ninguém que estava participando da Guerra dos 100 anos falava “uau, estou participando das Guerra dos 100 anos”, claro. Inclusive porque o baque na moral de quem participasse pensando nisso seria consistente. Mas em algum momento se consolidou o nome – errado, diga-se de passagem, já que a guerra propriamente dita durou 106 anos. Ah, as fake news do século XV!

Voltando: eu sempre fui fascinado porque o processo de formação destes nomes possui uma relevância em si. A Grande Guerra só se tornou a Primeira Guerra Mundial porque sobreveio a segunda, e neste sentido fico feliz que a Grande Depressão continue a ser chamada assim. O Grande Salto para a Frente não chegou exatamente em lugar nenhum, mas nem por isso mudaram o nome para O Grande Backflip do Mao – não que não merecesse.

Não só isso – o impacto de um evento também está associado ao seu nome, indo portanto muito além das questões de múltipla escolha da prova de História. A gripe espanhola não era espanhola, por exemplo, e por isso as pessoas talvez ignorem que sua provável origem foi no interior dos EUA. O estigma de nomes regionalizados para doenças se tornou relevante o suficiente para todo mundo (de bom senso) entender hoje porque é melhor usar Sars-Cov-2 a “vírus chinês” ou “micróbio do car**** de Wuhan”.

Digo tudo isso porque me coloquei recentemente a pensar sobre como chamaremos o nosso atual momento. Rapaz, está sendo uma geração animada (eufemisticamente falando). De 2000 para cá tivemos o 11 de Setembro, a consolidação do euro, Guerra do Afeganistão, tsunami da Indonésia, Guerra do Iraque, a crise econômica de 2008, desastre de Fukushima, ISIS, anexação da Crimeia, a ascensão do populismo de direita (com Brexit, Trump e grande elenco) e agora a Covid-19. E eu não vou nem falar do Brasil pós-2013 para não ativar gatilhos. Como chamar tudo isso?

Talvez o que ajude um pouco seja encurtar o período a ser nomeado – e eu pego o precedente da Guerra dos 6 Dias, que durou, essa sim, seis dias. Peguemos o período de 2016 pra cá, por exemplo. É claro que não é suficiente, e qualquer nome que dermos hoje estará errado e incompleto. Não temos o distanciamento necessário para ver o grande quadro. Mas isso não vai me impedir de tentar – de preferência, sem colocar um “gate” no final de qualquer palavra, o mecanismo mais manjado desde a década de 70. De qualquer modo, o nome vai depender do que acontecer nos próximos tempos, num óbvio exercício de futurologia que vai me amaldiçoar, talvez em breve. Daí surgem os possíveis cenários:

Tropeço

O Grande Tropeço (The Great Stumble, para o eventual gringo que apareça perdido por aqui)
Sabe quando você pisa em falso e sai catando cavaco, mas não chega a cair? Seria basicamente uma versão global disso. Começaria com uma derrota de Donald Trump que amainasse um pouco o ânimo dos populistas de direita mais entusiasmados com a expectativa de pegar em armas para defender a vida e a liberdade matando e prendendo dissidentes. Neste cenário, essa turma percebe que não vai ser um fim de semana em Prora colocar suas ideias no poder e o pêndulo balança um pouco de volta para a área do bom senso. O Brexit sai (porque não tem mais jeito, né?) mas o pessoal percebe o tombo que levou e dá aquela isolada boa no Boris Johnson e amigos, a galera na Europa segura um pouco a bola do pessoal exaltado. A vacina para a Covid-19 sai em no máximo um ano e a coisa começa a desanuviar. No Brasil, o gado continua destruindo o meio-ambiente, mas em menor escala porque o rei do gado perde o berrante. Cenário nota 6, probabilidade de 50%.

Fall on Face

O Grande Mergulho no Concreto (The Great Plunge Into Concrete)
O pior cenário é quando, depois de catar cavaco um pouco, você se espatifa com a cara no chão e perde um dente. Neste caso, Trump consegue um segundo mandato e o pessoal percebe que as instituições realmente estão funcionando como todo mundo imaginava e como era curiosamente esperado. A coisa desanda bastante nos EUA, porque uma parte do pessoal vai às ruas contra o resultado absurdo e a outra parte tem armas de fogo e dedo nervoso. A Pax Americana vira Bellum Americana, a China acaba de arrendar a América Latina e a África e o Putin compra, de novo, coisas no meu cartão pela internet. Aqui no Brasil, o Mezenga do Palácio do Planalto se atiça e cria raízes na cadeira enquanto o gado começa a comer prédios públicos também. Curiosamente, a Bolsa de Valores sobe no período e o pessoal comemora as “reformas fundamentais”. Este texto é apagado pelas piadas políticas, mas não a tempo de impedir a prisão do autor – que pega Covid-19 na cadeia, já que a vacina não chega a ser produzida. Afinal, o governo conclui que vale mais a pena investir na cura (que também não sai). Cenário nota 2, com probabilidade de 30% (sou um otimista).

Dos Santos

O Grande Duplo Twist Carpado (The Great Dos Santos)
Pra quem não sabe, o duplo twist carpado de Daiane dos Santos recebeu o nome da ginasta, e seria uma versão global dele que aconteceria aqui. Sabe quando você tropeça na festa, parece que vai cair mas consegue milagrosamente fazer uma manobra e cair sentado no sofá? Pois é, todo mundo notou o que aconteceu, mas ninguém quer cortar o seu barato de fingir que foi de propósito. Neste cenário, Trump se f*** em branco, azul e vermelho, Boris Johnson volta a brigar só com o pente, a Europa dá um passa moleque nos seus extremistas de quais natureza, a China recua diante da reorganização do outro polo e o Putin compra um pouco menos no meu cartão clonado de novo pela internet. Um pessoal aí no meio que cometeu uns crimes pega uma cana boa pra botar a cabeça no lugar e aqui no Brasil Jair, família e capatazes se dividem com agendas prolongadas entre Mossoró, Campo Grande e Catanduvas. Com a vacina desenvolvida em 6 meses, os países com líderes razoáveis começam a imunizar seus cidadãos e a economia respira (não é o caso do Brasil). Cenário nota 8, probabilidade de 10% de acontecer.

Outros cenários possíveis são O Grande Soluço (fica nesse vai não vai de autocracias populistas até um grande susto resolver as coisas), A Grande Topada do Dedinho na Beirada da Cama no Quarto Escuro (quando o menor é machucado pela falta de atenção do maior, há grande choro e ranger de dentes e a iluminação faz com que o menor volte a ser protegido adequadamente) e a Grande Escorregada no Banheiro (quando infelizmente o tropeço leva a atingir a quina da pia com a nuca, deixando todo mundo paralisado e em agonia. Neste caso, só com outra sociedade). Qualquer que seja ele, eu sei que o nome não será este aqui. Só me resta torcer para que os livros de História do futuro não tratem como O Grande Salto Realmente pra Frente dessa Vez.

Se houver livros de História, claro.

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Memento mori

Eu não acho que eu vá morrer, não é isso. Quer dizer, eu sei que eu vou morrer. Provavelmente. Melhor dizendo: por princípio, eu sou mortal, mas a gente nunca sabe quando os planetas vão se alinhar ou a gente vai cair num tonel de um isótopo radioativo desconhecido ou vai parar num tonel de planetas alinhados e desenvolver o gene da vida eterna. De qualquer forma, o normal é morrer. Eu só não acho que vá ser agora.

Isso não me impede de ficar preocupado, o que me parece bem natural quando se acredita no que eu acredito – no caso, em nada. Se você disser a uma criança que ela só tem mais 15 minutos no pula-pula, existem duas possibilidades: ou ela vai ficar triste a cada minuto que passar diante da proximidade do fim ou ela pulará como se a vida dela dependesse daquilo.

As primeiras crescem e se tornam filósofos, escritoras, corretores de seguros. As outras se tornam pilotos de corrida (incluindo o transporte público do Rio de Janeiro), atrizes e gigolôs. Eu mesmo não era muito de pula-pula, então isso aqui é uma grande imaginação.

Meu ponto, e eu percebo minha incapacidade crescente em chegar a um ponto qualquer nos meus raciocínios, é que eu tenho uma vocação para tornar tudo um memento mori. Gasto meu latim justamente porque não sei quanto tempo tenho mais de vida, mas é basicamente uma expressão que signifique “lembra-te que és mortal“. Ou seja, algo que reforce em ti a sensação de mortalidade. Dá um Wikipedia aí.

(Por Philippe de Champaigne - Web Gallery of Art:   Imagem  Info about artwork, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=369918)
É isso aqui que você acha quando pesquisa memento mori na Wikipedia. Parece ótimo.

Minhas lembranças de mortalidade normalmente são sazonais. Aniversários são críticos – lógico, você acaba de gastar um ano de vida fazendo o quê exatamente? – mas qualquer situação de risco de morte me coloca de novo em estado contemplativo. Como sou medroso e considero tudo um grande risco permanente, eu acabo passando muito tempo contemplativo. Aí todo este tempo contemplativo é lembrado no aniversário, reiniciando o ciclo. E la nave va.

O resultado de tanta contemplação é, grosso modo, tão triste quanto ineficaz. Sim, há o tradicional “eu queria tanto ter feito X em 2005” ou o “eu devia ter beijado a moça Y em 2011”. É claro que eu continuaria não tendo feito Y nem beijado X mesmo se eu fosse eterno, mas a sensação de perda permanente não desaparece. Cada jogo que nunca joguei, cada livro que nunca li, cada comida bizarra que não me arrisquei sussurra pra mim “lembra-te que és mortal“. Ainda bem, porque se sussurrassem “memento mori” eu nunca mais dormiria.

Hoje é um destes dias. Eu não acho que eu vá morrer, não é isso. Estatisticamente falando, minhas chances são as mais altas possíveis. O normal é não morrer. O racional em mim me esmurra internamente, berrando “larga de drama, pelo amor de tudo que é mais sagrado!” (meu racional é meio sentimental). Mas estou aqui, lembrando de X em 2005, de Y em 2011, de Z em 2014, de A’ duas semanas atrás. Sussurrando pra mim mesmo “lembra-te que és mortal“.

Eu preciso começar a dormir mais cedo.

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Sobre direitos e suas obrigatoriedades

Em 1948, no Texas, as primárias do partido Democrata para a disputa por uma vaga no Senado norte-americano contaram com quase um milhão de votos. A diferença entre o vencedor e seu adversário, no entanto, foi de apenas 87 votos. O escolhido naquele dia eventualmente se tornou senador, alçou posições de destaque e se tornou vice-presidente dos Estados Unidos em 1960.

Antes disso, no entanto, ele foi um dos principais nomes na aprovação dos Atos dos Direitos Civis, que alteraram drasticamente os direitos das minorias americanas. Três anos depois, este homem se tornou o presidente. E a partir deste momento ele foi o responsável por uma escalada no envio de soldados americanos ao Vietnã, resultando na morte de centenas de milhares de pessoas em uma guerra infrutífera e absurda.

87 votos são 0,0088% de 988 mil, um nada. Mas, em 1948, no Texas, 87 votos alçaram Lyndon B. Johnson a andares mais altos na política. A escolha e a ação daquelas 87 pessoas afetaram e afetam a vida de milhões de pessoas naquele país e no mundo até hoje.

Lyndon B. Johnson durante a campanha ao Senado de 1948. (Foto: New YorK Times)

Votos importam. Votos não são suficientes, nunca foram, mas são mais importantes e essenciais do que nunca. Votos são a manifestação final da vontade política em uma democracia representativa, a concretização da escolha da maioria na medida do possível. Votar é erguer a voz a um nível audível em meio aos ruídos da política – e quanto mais pessoas formos erguendo a voz, mais longe seremos ouvidos.

Vivemos, no entanto, em tempos de discurso anti-política, de desesperança e desilusão com nossas instituições. Como nunca, o ato de manifestar a escolha eleitoral tem sido desacreditado como algo supérfluo e pouco efetivo. Como algo irrelevante em contextos de manipulação de vontades, de populismo e demagogia. “De que serve meu voto se a grande maioria acredita nestas mentiras? ”, ecoam as falas nas redes sociais. “Por que me submeter a isso? ”.

Mas as eleições recentes em todo o mundo revelaram justamente que o voto é mais importante do que nunca. As convicções dos especialistas sobre como funcionam as disputas foram atingidas em suas essências pelos resultados. Mecanismos tradicionais de campanha se mostraram ineficientes, candidatos com recursos financeiros e de propaganda caíram diante de velhas estratégias políticas em novas formas de comunicação.

O que sabíamos sobre a política eleitoral está sendo revisto e repensado, mas nada disso teria sido possível sem o voto. Nas palavras do escritor Aaron Sorkin (imortalizadas na voz do fictício presidente Josiah Bartlet interpretado por Martin Sheen na série “The West Wing”), “as decisões são tomadas por aqueles que comparecem.”

Nós sabemos que você votaria neste homem se pudesse. (Imagem: Wikipedia)

Temos uma atuação política cada vez mais incrustada em nossos hábitos cotidianos. Repassamos conteúdo ideologicamente carregado em mensagens a amigos e parentes, opinamos sobre políticas públicas em redes sociais como se falássemos de uma nova série de TV. E tudo isso importa, mas apenas se estas mensagens ecoarem em nossos interlocutores a ponto de leva-los à ação. Opinião não é voto. Intenção de voto não é voto. Sem a participação efetiva, todo este esforço se desmancha no ar. Quaisquer que sejam as manipulações e mentiras, elas não terão fruto sem a ação prática dos eleitores.

Parece um contrassenso, portanto, que ainda precisemos de algo como a obrigatoriedade do voto. Um cidadão consciente da relevância deste direito e da força deste dever não teria motivo para abrir mão deste poder. Mas respiramos uma atmosfera de demagogia e de ataques aberto às fundações da nossa democracia. Uma atmosfera de discursos “contra o establishment” que envolve de maneira nociva os princípios basilares da democracia, como se dificuldades e desafios fossem intransponíveis e tornassem inúteis os mecanismos existentes de atuação.

Isso acontece porque nada ameaça mais o poder destes inimigos das instituições do que a manifestação da vontade popular. O voto é como a água contra tentativas de tiranias aparentemente sólidas, encontrando as rachaduras e corroendo suas bases frágeis. Enquanto existirem eleições livres e limpas, há espaço para mudanças e melhorias. E, como em tantas outras situações em nossas vidas, muitas vezes somos compelidos a agir pela evolução que queremos ver no mundo e em nós mesmos.

A obrigatoriedade do voto obviamente não é uma garantia de participação popular, mas sua ausência certamente não é benéfica. Países sem este mecanismo sofrem com a abstenção cada vez mais defendida por aqueles que querem menos participação popular. Em uma das eleições mais disputadas da história dos Estados Unidos, em 2016, pouco mais da metade dos eleitores possíveis compareceram às urnas. Foi a menor participação em 20 anos. Em 2019, a participação entre os 900 milhões de eleitores indianos foi recorde, e mesmo assim cerca de um terço daqueles que poderiam ter votado deixaram de comparecer.

Votemos, portanto. Não pela obrigatoriedade, mas pelo direito. Não pelos prejuízos da ausência, mas pelos benefícios da presença. Não abandonemos nosso dever cívico por uma falsa sensação de impotência, pois é justamente neste momento que nossa voz deve se erguer mais alto por aquilo em que acreditamos. E porque se mesmo ao fim do processo nossa escolha for derrotada, temos a lição do ex-presidente americano John Quincy Adams: “Sempre vote pelo princípio, ainda que vote sozinho, e você poderá se regozijar na sensação de que seu voto nunca foi perdido. ”

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A era da pratita

Pirita é o nome popular do dissulfeto de ferro, também conhecido como “ouro dos tolos”. Recebe este nome porque, devido a sua aparência, já foi comumente utilizado em golpes para simular o metal precioso. Não sei se existe algo equivalente a isso para a prata, que possa se passar por prata. Na falta desta informação, invento a “pratita”, a pirita da prata.

Ainda sobre prata, “bala de prata” é como comumente se chama aquilo que soluciona de forma rápida e eficiente um problema complicado. Vem da mitologia, quando se acreditava que balas de prata ou revestidas do metal seriam a única forma de matar criaturas como lobisomens, bruxas e outros entes imunes a ferimentos normais.

Isto é pirita. Reluz, mas não vale absolutamente nada. (Imagem: Wikipedia)

Tudo isso para dizer que vivemos a era da bala de pratita. De tempos em tempos, diante do maior problema que temos no país – um autocrata incendiário no poder – nos empolgamos diante do que parece ser uma bala de prata. Mas a criatura mitológica, ferida ou não, se ergue novamente. E a bala cai ao chão, revelando-se de pratita – parecia prata, mas era só metal sem valor.

Sempre que um “tiro” é disparado, dizemos que “agora vai” cada vez mais cientes, no fundo, de que não vai. Nunca vai. Porque balas de prata não existem no mundo real. Soluções simples para problemas complexos geralmente são erradas. A eficiência de curto prazo se revela inútil no longo prazo. Não existe solução mágica, não existe panaceia, não existe prata que possamos utilizar para revestir nossos desejos. Só pratita.

Mas mesmo que tivéssemos balas de prata, elas seriam inúteis porque nossa democracia está ficando sem pólvora. Já não nos resta forças para, diante de novos descalabros, sequer atirarmos. Poderíamos comprar 50 (ou 6.000 agora) projéteis de prata real que não faria diferença mais, porque nos falta a energia. Ela se esvaiu em tiros para cima, para o chão, para os lados, em nossos próprios pés.

O presidente da República é gravado afirmando que interferirá politicamente em órgãos públicos para se beneficiar e se beneficiar seus parentes e nada. O presidente da República ordena a jornalistas que calem a boca, usa a máquina pública para atingir veículos de comunicação críticos e agora ameaça fisicamente um repórter. Nada. O presidente da República demonstra em reunião com ministros militares de seu governo querer interferir diretamente em outro poder para se proteger. Nada.

Nada acontece porque isso não depende só da nossa revolta individual. Estabelecemos um modelo institucional de governo, em que representantes populares com mandato tenham o poder, e o fizemos com boas intenções. Isso reduz nossa instabilidade e o impacto das efêmeras vontades populares, muitas vezes manipuláveis. Mas para isso é preciso que estas instituições exerçam este poder, e que sejam responsabilizadas quando não o fizerem. Que atuem com base em princípios republicanos, não personalistas, e que exerçam o papel de contrapeso que lhes é definido pela Constituição brasileira.

Por isso, não nos cabe mais apenas a revolta contra os absurdos que partem do presidente. É nosso direito e nosso dever cobrar e exigir dos demais poderes que ajam, que cumpram suas funções. Não com notas de repúdio, não com entrevistas, não com bravatas em redes sociais, mas com o peso da lei. Porque estas instituições têm um valor fundamental, garantido a elas por nossa vontade, mas ele precisa ser real, não simbólico. Precisa ser de prata, e não de pratita.

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Quanto custamos?

Em 16 de janeiro deste ano, o Ministério da Saúde publicou um boletim epidemiológico. Ali, se informava o que seria feito para monitorar uma “pneumonia de etiologia desconhecida” descoberta na China. Hoje, conhecemos o novo coronavírus, entendemos mais sobre seus efeitos e contamos milhões de mortos pela doença em todo o mundo.

Eu não vou contar a história pessoal das vítimas da Covid-19 no Brasil porque não seria justo nem viável. Se eu dedicasse um mero parágrafo a cada uma delas, precisaria de o equivalente a vinte e oito Bíblias em páginas. E, mais importante neste contexto, precisaria de trezentas e quarenta Constituições Federais do Brasil. Eu só tenho uma página.

Mas eu também não vou contar a história destas pessoas porque me parece um esforço vão. Sempre que isso é feito, o objetivo é o de humanizar os números, dar um rosto às dezenas, centenas, milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares de mortos pelo vírus. Afinal, como diz uma frase atribuída ao ditador soviético Josef Stalin, “a morte de um homem é uma tragédia, mas a morte de milhões é uma estatística. ” Por isso, a ideia é focar na história individual de cada um para não permitir que estes rostos se percam no oceano de caixões.

Só que, nos últimos cinco meses, histórias individuais de muitas destas vítimas foram contadas todos os dias. Nós as lemos e ouvimos em redes sociais, em jornais impressos e em telejornais, mas nada disso foi suficiente. Lemos e ouvimos todos os dias relatos de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas que estão atuando no combate à Covid-19 e nos emocionamos com o que eles relatam, mas nada disso foi suficiente. Como ouvi em um podcast esta semana, em uma palavra que me doeu profundamente, a pandemia já foi “precificada”.

Precificar, neste contexto, significa que as mortes pela pandemia já tiveram seu impacto político e econômico calculado, mensurado e colocado em uma gaveta. Precificar significa que todas as mortes ocorridas até agora já causaram o efeito que poderiam causar em tomadores de decisões. Precificar significa que, não interessa quantos outras dezenas de milhares de mortes ocorram, elas já fazem parte do cotidiano.

Mas precificar, em sua origem, é simplesmente colocar um preço, de modo que a pergunta natural imediata é: qual foi este preço? Porque uma pandemia não tem custos apenas em socorro financeiro a cidadãos, empresas e governos ou efeitos políticos de decisões. Uma pandemia cobra sua taxa em vidas. Então qual é o preço?

Quantas vidas custa pararmos e reunirmos, em um momento como este, os chefes de dois dos três poderes do país para discutir limites fiscais futuros? Mil? Duas mil? Mil e quinhentas? Quantas vidas custa decidirmos que a prioridade é saber quem apoia ou deixa de apoiar quem nas próximas eleições? Quantos brasileiros terão de morrer enquanto debatemos se é ou não momento de liberarmos mais armas para a população? Quantas vidas estamos dispostos a perder por cada um destes assuntos?

Estamos pagando em sangue por tudo isso. Estamos sacrificando nossos idosos em altares de austeridade, abandonando entes queridos por vagas em câmaras de vereadores. Estamos fingindo que seguimos orientações de nossos cientistas para minimizar riscos enquanto tratamos a pandemia como se ainda estivéssemos em 16 de janeiro. Nossos tomadores de decisões lamentam as mortes de maneira protocolar antes de debater quem é responsável pela conclusão de uma rodovia. Porque isso os distancia de suas responsabilidades, colocando nossas perdas em um passo que já não cabe no novo ciclo de notícias.

Nós discutimos a reforma da casa com o telhado ainda em chamas e nossos avós e filhos ainda trancados em seus quartos. Se não erguemos nossa vez contra isso, nada mudará. Se não firmarmos pé e cobrarmos nossos representantes, nada mudará. Se deixarmos que nossos governantes ajam apenas com base em interesses próprios e na pressão de grandes corporações, nada disso mudará. Visibilidade salva, e isso deveria ser nossa prioridade. Nossa sobrevivência deveria ser nossa prioridade.

Porque nossos tomadores de decisões já colocaram um preço em nossas vidas e, para eles, este preço já foi pago. Isso nos torna supérfluos por uma simples regra de mercado: a força de uma moeda é dada pelo que ela consegue comprar. E se eles estão dispostos a pagar com centenas de milhares de nossas vidas, é porque já não valemos nada.

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Protesto realizado pela ONG Rio de Paz após atingirmos 100 mil mortes pela Covid-19 no país. Imagem divulgada pela própria ONG.

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